::O sétimo dia
Faz 7 dias que meu anjinho me deixou. Desde então eu não escrevia. Hoje a tristeza e a saudade estão insuportáveis, muito maiores do que quando tudo aconteceu, e eu precisava desabafar de alguma forma, em algum lugar. Foi chocante demais para toda a família, mas eu me sinto obrigado a ser mais forte que minha esposa e meus dois filhos para ajudá-los a amenizar o sofrimento. Não estou conseguindo.
Esse diário não é meu, é da Camilinha, minha filha. Depois de passar o dia inteiro no trabalho, totalmente desconcentrado e só pensando nela, vim direto pra casa – mesmo com a insistência de meus amigos para que saísse com eles, pois me faria bem. Durante horas fiquei aqui, no quartinho dela, observando os detalhes do mundinho onde vivia. Bonecas, ursinhos, duendes – que ela adorava - , roupinhas de todas as cores, fotos dos amiguinhos espalhadas por todo o quarto, a Alice no chão. Alice era a boneca preferida dela, amiga inseparável que ganhou quando tinha cinco anos. “Presente do Papai Noel”, dizia. Em cima da cama achei aberto esse diário, que ela escrevia desde os sete anos, na página onde fez suas últimas anotações: “Amanhã vou passear com a turma. A Pati, a Aline e a Bia também vão. Vamos pra um parque em São Paulo. Não sei o nome. Vai ser divertido.”
Não pude conter o choro e a vontade de desabafar. Não teria tempo, nem paciência suficientes para procurar o meu diário, por isso escrevo aqui. É difícil aceitar a idéia de que você nunca mais verá uma criaturinha tão frágil e linda que foi sua durante nove anos. Apenas nove anos. Nesse curto período, a Camilinha veio ao mundo, me conquistou, encheu a minha vida de luz, se tornou parte de mim e se foi.
Lembro-me perfeitamente do sorriso dela quando, há três semanas, veio me contar do passeio que a escola organizou, por conta de seus cinqüenta anos de existência, a um dos maiores parques do país. Veio me pedir autorização: “todo mundo vai, pai. E a gente não viajou esse ano”. Eu deixei, é claro, e ela passou todos os quinze dias seguintes cuidando, junto com a mãe, dos preparativos do passeio. Roupa nova, mochilinha, máquina fotográfica. Foi toda serelepe rumo à primeira grande aventura sem os pais e os irmãos. E a última.
Na volta do passeio, chovia muito e a estrada estava escorregadia. O ônibus deslizou, saiu da pista e capotou na mata. Três crianças sobreviveram. Infelizmente, Camilinha estava na lista das 47 vítimas. Era madrugada quando recebi a notícia por telefone. Não acreditei na hora. Não acredito até hoje.
São onze da noite agora, horário em que costumava trazê-la aqui pro quarto e colocá-la pra dormir. Há uma semana espero que ela vá até a sala puxar a minha mão para que eu realize esse ritual diário. Há uma semana eu tento fingir que o tempo não passou e nada aconteceu.
Hoje foi a missa de sétimo dia da Camilinha. Triste demais ir lá e ter certeza de que ela não está entre nós. Não fui, não suportaria. O Beto e o Cadu, meus dois presentes divinos que ainda me motivam a viver, me disseram que o padre falou que ela se tornou um anjo. Para mim ela já era. Que está num lugar lindo. Eu espero que esteja. E que nós um dia iremos revê-la. É tudo o que quero.
2.1.03
Publicada por fitomaia. à(s) 03:58
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