14.5.03

::Como se tornar uma estátua

Há um bom tempo minhas linhas aqui têm sido poucas. Muitas imagens, citações e palavras econômicas. Palavras-chave. Ícones. =(

Acontece que nunca fui de meias palavras, meias linhas e meios textos. Pelo contrário, quando o sangue pulsava mais quente as linhas de um caderno eram insuficientes. Diários, livros velhos, folhas avulsas, o cantinho do jornal de ontem, enfim, em qualquer lugar que coubesse eu despejava uns verbos.

Acho que o sangue esfriou. Ou cresci, sei lá. Não sei bem se essa é a afirmação que cabe. Se crescer é ter medo e dificuldade de autotradução, que eu comece a regredir agora. Na verdade, receio já ter começado. Meus pés parecem só conseguir andar pra trás. Meus olhos não se fixam no horizonte. Tenho olhado para baixo, para o lado, para o nada, mas muito pouco para frente e para dentro de mim.

Não me entendo mais. As crises existenciais da adolescência são tolas diante do agora. Naquela época, quando arranhei os primeiros lápis no papel para falar de mim, transbordavam hipóteses do que seria meu eu. Aqueles versos, mesmo que equivocados, ao mesmo tempo em que me confortavam, davam uma faxina na alma e preparavam-na para seguir em frente. Agora eles não saem. E quando resolvem aparecer, falam sobre minhas bordas, minha superfície ou meu exterior.

Desaprendi a nadar na alma, a fechar os olhos, tomar impulso e mergulhar nas minhas próprias profundezas. Por quê? Não sei se foram as decepções ao longo do tempo, a sensação de estar tão longe do lugar almejado, o racionalismo matemático da escrita, exigido no jornalismo, ou a perda da pretensão de possuir um dom que talvez nunca tenha sido meu. O fato é que a possibilidade de abrir os olhos e me enxergar como sou apavora. Fica mais fácil desviar a atenção, indeterminar os versos, trocar as madrugadas reflexivas por horas diárias de sono. Um sono que é cada vez maior. Que mantém o corpo na potência mínima exigida para aquele dia. Que não alivia, não renova, só mantém.

Sinto que os braços e pernas que me levam rumo ao imaginário estão gangrenando, prestes a se tornarem inúteis. Falta húmus-literário para fertilizar meus pensamentos, e eu não sei onde comprar. Temo muito em breve necessitar de um tradutor para que eu possa entender meu discurso. Será que eles existem? Será que os profissionais que hoje prometem desvendar nossos mistérios realmente conseguem decodificar o que só é transmitido de você para você mesmo? Tenho dúvidas.

Meus papéis costumavam fazer as vezes do terapeuta, do tradutor. No entanto, eram mais tímidos. Limitavam-se a armazenar as perguntas que lhes eram ditadas. Não me davam respostas. Só me deixavam perguntar, o que já bastava.

Agora eu quero as respostas. Não das perguntas que já fiz, mas daquelas que ainda não estão no papel. Daquelas que sequer existem como perguntas lógicas, passíveis de resposta, pois eu não consigo estruturá-las. Por mais que eu tente buscar uma ordem, só encontro símbolos que teimam em ser ilógicos, que brigam entre si e nem se importam comigo. Tamanha confusão me cega. A escuridão impera. E eu só vejo um cintilante ponto de interrogação. Nada do que está antes, nada além dele.

Enquanto isso, permaneço imóvel. Sem saber o que buscar, não há para onde ir. Na tentativa da não me perder, brinco de estátua. E convenço tão bem que os outros começam a questionar minha humanidade. Já sou estátua aos olhos de muitos. Eles vêm e vão sem que eu me mova. Eles passam ao meu lado, à minha frente, por trás e por cima de mim. Nunca por baixo. As estátuas costumam ser pesadas, é difícil levantá-las. E é justamente o peso que me faz estátua. O peso da incompreensão e da covardia.

Rezo para que as perguntas e respostas apareçam o mais breve possível. Antes que eu olhe para o espelho e veja um reflexo acizentado, quase estático. Antes que eu olhe para o espelho e não consiga ver mais nada, pois já serei estátua.

(Rafael Maia)