::Devido a alguns probleminhas de saúde não andei blogando nesses últimos dias. Já estou melhor e decidi, para suprir a falta de novidades, publicar esse conto, escrito há poucos dias, que vai inaugurar as publicações do gênero aqui no PQP...
::A Revelação
E sentou-se no chão, gemeu, chorou. Pensava em como sua vida poderia ter sido muito mais do que aquela monotonia em que se tornara. Há anos era tudo igual. Há anos as paredes eram brancas. Há anos os livros ficavam arrumados na mesma ordem na estante. Há anos o mural de fotos não via uma cara nova. Há anos o único troféu que ganhara olhava para ela todos os dias, do mesmo lugar. Há anos o abajur estava quebrado. Há anos adiava os planos de realizar mudanças. Há anos tinha deixado de ser feliz.
E só agora se dava conta de que poderia ser tarde demais para começar as reformas do quarto e do coração. As paredes já não tinham o mesmo brilho de outrora. Seu rosto já não tinha a mesma juventude. O mofo já tomara conta de todos os cantos do quarto. O sofrimento já tomara os lugares da vivacidade, da alegria e do amor em seu coração. Refletiu e chegou a cruel conclusão de que sua vida havia mudado sim. Para pior. E agora nem era mais vida. Era um estado de existência qualquer que não tinha a excelência, a grandiosidade do viver.
Tentava encontrar algum motivo que tivesse levado sua vida a tomar esse caminho. O caminho da não-vida. Por horas ficou ali, sentada, no chão daquele quarto que já conhecia minuciosamente, como se estivesse a observá-lo pela primeira vez. E realmente nunca o tinha enxergado de tal maneira. Ao ver cada pedaço de seu pequeno paraíso em estado de decomposição é que percebeu como o tempo havia passado ali também. Pois costumava pensar que se ficasse trancada entre aquelas paredes o quanto quisesse, o tempo jamais passaria, ou passaria tão longe que não se esforçaria para bater na porta de seu quarto. Como estava enganada!
Chegou à idade adulta totalmente inexperiente, sem conhecer uma das mais descompromissadas e divertidas fases da vida. Nunca saíra com amigas à noite pra dançar. Nem tinha muitas amigas. Nunca tinha tomado um porre daqueles que fazem você acordar no dia seguinte na sua cama sem sequer saber como chegou lá. Nunca tinha levantado a voz para os pais ou para os irmãos – tinha agora dois – para impor uma vontade ou expressar uma opinião sem que fosse questionada. Nunca tinha tirado uma nota baixa no colégio. Nunca tivera um namorado. O único beijo na boca que dera foi, na verdade, roubado. De um príncipe? Não, de um sapo, mas precisamente do garoto mais feio e nojento do colégio. Nunca contou pra ninguém. Para as amigas ela era também “virgem de boca”, sem dúvida alguma a mais careta do pedaço, título do qual não tinha o menor orgulho. No fundo, tudo o que ela queria ser igual, ter uma vida semelhante às de suas amigas. Mas quanto mais tentava mudar, menos conseguia.
Subitamente, em meio às suas reflexões, surgiu um fato que pareceu-lhe ser o marco inicial de seu caminho decadente: as fotos espalhadas pelo chão. Já havia se passado sete anos, mas a lembrança detalhada de cada uma das fotos não havia saído de sua mente. A sensação era de que tudo estava ocorrendo outra vez, naquele exato momento. A sensação era ao mesmo tempo um misto de incompreensão, sufocada em seguida por uma visão clarividente e horripilante de tudo, acompanhadas pelo surgimento de um ódio em proporções tão imensas quanto o fato exigia. A sensação era de que acabara de chegar daquela colônia de férias, sorriso de orelha a orelha, brilho digno de diamante nos olhos, corrida serelepe rumo à sua casa e aparentemente ninguém lá. A sensação era de que abria as portas e não achava ninguém. A sensação era de que ao abrir a porta do quarto dos pais, ouviria o barulho do pai no banho e encontraria as fotos.
As fotos espalhadas pelo chão. Mostrando uma realidade bem distante da de uma mente de puros 11 anos: seu pai, que de início se recusou a reconhecer naquelas imagens, numa celebração de sua superioridade, abusando de todas as formas imagináveis do menino. O irmão dela. Seu terceiro irmão, o mais indefeso, o mais impotente diante daquilo tudo e por isso mesmo o escolhido minuciosamente pelo predador. A incapacidade que tinha de expressar pela voz e pelos gestos toda a dor que sentia fez com que o menino tirasse a própria vida dois dias depois. Aos nove anos de idade. O pai conseguiu chorar a morte do menino ao lado da esposa e dos agora três filhos como se não tivesse parcela alguma de culpa na tragédia que abalou a família. Afinal, ninguém jamais saberia...
E ninguém jamais soube. Porque ela afogou dentro da memória as mesmas lembranças das fotos espalhadas pelo chão que sete anos depois voltavam a aparecer. Na época não quis contar tudo e ser ela a responsável pela total desestruturação da família já tão abalada. O tempo passou e as lembranças se tornaram um áspero nó em torno de seu pescoço, que a sufocava e a impedia de viver normalmente. A reclusão, o afastamento do mundo foi a saída natural que encontrou para que o nó afrouxasse um pouco. Abdicou de sua vida em prol da felicidade de uma família que fingia ser feliz.
Mas a vida a partir dali foi tão lenta e negativamente gradativa que ela sequer recordava do marco inicial daquele pesadelo. Passou a se arrastar contra os dias para que eles não a levassem de vez e aos poucos se esqueceu dela mesma. Ia somente ao colégio pra parecer que tinha uma vida. E se dedicava aos estudos como se decorar as leis de Newton e os nomes de todas as figuras de linguagem fossem uma válvula de escape para a dor, a garantia de que o nó não seria apertado. Mas não fazia novas amizades, não cuidava da aparência, não se divertia. Isolou-se num período qualquer do tempo e ali ficou vivendo um conto de fadas às avessas. Morria aos poucos na esperança de que algo inesperadamente lindo mudasse sua vida. Sete anos e nada.
Foi quando despertou do sonho e sentou-se no chão, gemeu, chorou. Tinha olhado à sua volta e percebido que o quarto o qual exaustivamente habitara nos últimos sete anos estava a ponto de desmoronar. Caiu em si e o pranto que rolou de seus olhos era por tudo que não viveu, era por seu irmão, era por não ter contado o que ninguém jamais saberia, era por ter que odiar eternamente o próprio pai. Viu sua vida inteira passar diante dos olhos em dois minutos, revelando-lhe todos os porquês, revelando-lhe o passo seguinte.
Não pensou duas vezes. Furou o pulso esquerdo e com o sangue que dele escorria assinou a carta que há sete anos escrevera revelando a que ponto a crueldade do pai fora capaz de chegar. Terminou de triturar os pulsos e implorou por perdão no mais alto grito que conseguiu dar. Quando a porta foi arrombada foram encontrados um quarto em ruínas, um corpo frio e pálido, um rio de sangue, uma carta e as fotos espalhadas pelo chão.
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